sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

E eu não sou uma mãe?

E eu, não sou eu uma mãe? 
Por: Patricia Silva

Patricia e sua mãe
Faltam menos de 24h para chegada do dia que se tornou um marco indelével em minha vida, o dia em que fui transformada em mãe de um Anjo, mãe de uma estrela...
De lá pra cá venho trilhado um caminho pedregoso, espinhento e por vezes enlouquecedor que tive que aprender a atravessar sem sucumbir por completo...
Talvez a jornada mais difícil para uma mãe que não planejou essa condição oferecida pelo universo... não apenas por continuar alimentando um amor incondicional pelo filhx que se foi, mas principalmente porque não somos consideradas mães de verdade. Continuar se afirmando como mãe de um filho que ninguém vê passa a ser um sinal de loucura...
E eu, não sou eu uma mãe?
Culturalmente, precisamos vislumbrar de coisas concretas para que justifiquemos a sua existência, pois provenientes de uma sociedade materialista, reconhecer qualquer outra coisa que não seja condicionada pela visão, se torna uma falácia, um fruto ingênuo da imaginação.
Se dizemos que temos fé, nossa palavra por si não basta, temos que provar, desta forma que: "o verbo se fez carne e habitou entre nós".
Se confessamos que temos amor gratuito, duvidas são levantadas quanto a real existência desse sentimento, afinal, "todo mundo espera algo em troca”.
Se confessamos que possuímos um sentimento de pertença que transcenda esse universo, que ultrapassa as barreiras do que conhecemos para além do que estamos acostumados a ver... que não podemos exemplificar a partir da matéria física que somos nós, por muitos somos apontados como blefadores do mundo encantado de Alice.
Se optamos por uma vida ancorada no amor, na cumplicidade, no que seja além do que nossos olhos possam ver, nossa sanidade pode ser questionada... e a loucura pode se tornar nossa eterna companheira... pois temos certeza e convicção de nossas crenças... dizer que sim, somos mães de alguém que não possamos provar... ainda é o melhor remédio...
Enfim... E eu, não sou eu uma mãe?
Se assim fomos e somos construídos, como reconheceriam a legitimidade de uma mãe de colo vazio, de um filho estrela associado a um Anjo, e todo o seu discurso de amor crescente, de uma saudade latente, de um carinho imensurável e da ausência de um pedaço de nosso corpo materializado um dia por esse ser que se foi? Não sou eu, socialmente e culturalmente falando, não sou eu uma mãe de verdade?
Diante dessa negação, somos convidadas a viver no anonimato, na invisibilidade e principalmente em silêncio sobre a nossa nova condição de mães órfãs. Não podemos falar de nossos filhos e filhas ausentes simplesmente porque não os apresentamos com vida a esse mundo material...
O luto da mãe de um filho ausente ainda é um tabu que precisamos enfrentar. Nos é negado o direito até de estarmos em luto, pois não faz sentido sentir falta de um filho(a) que esse mundo não conheceu, e portanto teoricamente não existe...
Poderia citar muitos exemplos que vivi nesses 11 meses e 29 dias que convivo com essa realidade, porém, para não me estender muito, falo apenas de um, sendo ele talvez o maior e precursor de todos os outros... é a deslegitimação, a negação de que sim, já somos mães...
Não somos consideradas mães legítimas simplesmente porque não apresentamos nossos filhos materializados a este mundo.
Não conheceram seus rostos, não souberam de seus hábitos, suas manias manifestadas mesmo quando ainda não conseguíamos senti-lxs mexendo em nosso ventre.
Não participaram das conversas que nascem na linguagem única e talvez a mais difícil de se entender entre a humanidade que é o dialeto próprio existente entre mães e filhxs desde o dia do positivo. Em nossos silêncios conversamos constantemente com esses seres que se tornam nós sendo eles próprios. Conversas regadas pelo amor, medo, angustia, incertezas mas principalmente esperanças...
Um universo de esperanças se abrem entre nós quando nos descobrimos e a partir daí se expande pela eternidade...
Como qualquer mãe de um filho presente, também continuamos vendo-os em todos os lugares que estamos, idealizamos e sonhamos com seu futuro promissor e até os enxergamos cuidando de nós na velhice, quando nos faltarem os sentidos e a caduquice tomar conta do nosso ser....
Sim. Também contamos os dias, os meses, os anos como a mãe de um filho materializado. É uma conta ao contrário, mas tão legitima e importante quanto. Não é menor, não é melhor, é só o ato natural de toda mãe.
Passamos horas enxergando-os em nossa realidade atual e confesso, rimos e choramos com os planos que instintivamente somos inclinadas a fazer.... casamentos, aniversários, confraternizações, enterros, indignação com a violência desse mundo, sorrisos, lagrimas, em tudo enxergamos, deduzimos suas ações como se eles vivessem em nós... e nós neles...
Conversamos, brigamos, nos defendemos, nos acusamos, reclamamos, enfim, nos colocamos no devido lugar que ganhamos quando os recebemos...o de sermos simplesmente mães e filhxs...
E eu, não sou eu uma mãe?
Manter o equilíbrio entre o que nos negam e o que de fato sentimos se torna uma grande missão... O silêncio ensurdecedor nos conduz ao isolamento, nos convida a calar a boca no imperativo... estabelecendo uma ordem. E nós, cansadas de brigar, concluímos que de fato, isso é o melhor a ser feito.
“E para o bem de todxs e felicidade geral da nação” ... nos calamos.
Assim, nesse mundo de faz de contas, para não incomodar mais ninguém com esse assunto fúnebre, tudo volta a ficar bem. Respondemos exatamente o que que as pessoas querem ouvir quando nos perguntam se está tudo bem...sim, está tudo bem!!!
E eu, não sou eu uma mãe?
Mas como não calar se não encontramos ouvidos que queiram escutar as nossas aspirações e devaneios?
Como não calar, não acreditar que é loucura ou até pecado falarmos de um filho(a) ausente para mundo, mas que sentimos presentes em cada segundo de nossas vidas, o vemos em todas as coisas bonitas encontradas em nosso caminho todos os dias?
Como não calar diante do tempo que determinam que deve durar o nosso luto nos convencendo que nosso pranto não tem sentido algum porque pior mesmo é fulano ou beltrano que perdeu o filho(a) com cinco anos de idade?
Como não calar se situações piores que as nossas é a dor das outras pessoas que prepararam todo o quarto, compraram todo o enxoval, deixaram tudo pronto para quem estava para chegar... e tiveram o sonho interrompido?
Quando se deseja um filho(a) e enfim ele(a) chega...fica tudo, exatamente tudo pronto. Porque o que precisa estar pronto somos nós.
Nasce uma mãe, nos tornamos mães independente do destino que terá esses filho (a)s... e isso ninguém, muito menos nós podemos mudar.
Mensurar qualquer tipo de perda a partir de comparações não é a melhor forma de se consolar qualquer pessoa diante da dor que se instala em seu peito, seja lá qual tenha sido as circunstancias ou o tempo que esse filho durou, se foi semanas, meses ou cinquenta anos, sempre será uma dor.
Não limitemos com nossos rótulos e caixinhas prontas de comportamentos previsíveis... como uma mãe de um anjo deve se comportar. Um simples abraço ou um sinto muito no lugar de verbalizar que um outro filho chegará é mais acalentador do que qualquer discurso.
Sei que a intenção é realmente ajudar, até passar por isso meu pensamento também não era formado sobre esse assunto, como tudo na vida é aprendizado, estamos aqui pra aprender...
Ninguém consola um filho que perdeu acabou de perder sua mãe alegando que em breve Deus dará uma outra mãe... pois ninguém substitui ninguém.
Independente do que virá, de quem chegará depois, cada um terá seu espaço...
Enfim, cada filho é único, na alegria e na dor, cada sentimento será único para cada ser que nos for presenteado e também nos retirados.... reflitamos.
E eu, não sou eu uma mãe?
Sim, sou eu uma mãe. E hoje o que melhor me define é ser quem me tornei depois de conhecer esse universo tão lindo e sublime que me foi apresentado enquanto gerava Enzi e todo o nosso futuro juntos. Seja lá em qual dimensão ou condição, sou eu uma mãe, sou Patrícia, mãe se Enzi.
Com muito carinho e extrema gratidão, dedico esse texto a minha família do Felicidade Sem Culpa que me acompanha nessa grande aventura que o universo me delegou de ser mãe de um lindo Anjo.
Obrigada meninas por estarem comigo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nos sorrisos e nas lamúrias, na reconstrução de uma vida que precisa seguir sem culpa de ser feliz,...
Gratidão, Gratidão, gratidão...
E sim, somos nós, todas nós mães!
Tatianna NNogueira sua linda. A vc meu carinho especial por me incluir nesse sonho que vc sonhou e construiu a partir de sua experiência para todas nós. Mães de Anjo.
Com muito amor...
Patrícia. 10.01.2018
Considerações:
Minha escrita traz a voz das referências que me inspiram. Com base no poema protesto de Sojourner Truth que discorre sobre a luta das mulheres negras contra a opressão, “E eu não sou uma mulher?” Tomei a ousadia de falar um pouco sobre a invisibilidade das mães de colo vazio na atualidade.
Nossos passos vêm de longe, muito longe, e sei que cada vez que nos debruçamos sobre a nossa condição atual e as mazelas sociais que ocorrem ao nosso entorno, olhar pra trás, como num eterno movimento de Sankofa nos trará força para seguir caminhando e lutando. Deixo aqui também um pouco da história dessa mulher tão forte e inspiradora a fim de conhecermos melhor nossa história e sempre estarmos disponíveis para a prática do Ubuntu.
“Sojouner Truth nasceu na condição de escravizada em Nova Iorque, sob o nome de Isabella Van Wagenen, em 1797. Truth foi tornada livre em 1787, em função da Northwest Ordinance, que aboliu a escravidão nos Territórios do Norte dos Estados Unidos (ao norte do rio Ohio) apesar de o sistema de escravidão nos Estados Unidos, só ter sido abolida nacionalmente em 1865, após a sangrenta guerra entre os estados do Norte e do Sul, conhecida como Guerra da Secessão. Sojourner pode receber alguma escolarização pois viveu alguns anos com um família Quaker e tornou-se uma pregadora pentecostal, ativa abolicionista e defensora dos direitos das mulheres. Em 1843, mudou seu nome para Sojourner Truth (Peregrina da Verdade) e tornou-se uma importante abolicionista e defensora dos direitos das mulheres.
Em 1851, durante a Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, Truth fez o seu discurso mais conhecido. Seu discurso é marcante tanto pelo impacto das palavras - já que ela era uma excelente oradora - como pela conjuntura em que ela proferiu as palavras. Segundo Angela Davis, em Mulheres Raça e Classe, não se sabe se Truth foi convidada para a convenção, ou se ela foi por iniciativa própria. Mas, sabe-se que a plateia era branca e com a presença de diversos homens que diziam - em uma convenção de direitos das mulheres! - que as mesmas não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim, a primeira mulher fora uma pecadora. Truth era a única negra a participar do evento e ela fez o que nenhuma mulher branca fez: destruiu os argumentos dos homens que estavam no local. Leia o histórico discurso.
"Muito bem crianças, onde há muita algazarra alguma coisa está fora da ordem. Eu acho que com essa mistura de negros do Sul e mulheres do Norte, todo mundo falando sobre direitos, o homem branco vai entrar na linha rapidinho.
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher?
Eu pari reze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?
Daí eles falam dessa coisa na cabeça; como eles chamam isso… [alguém da audiência sussurra, “intelecto”). É isso querido. O que é que isso tem a ver com os direitos das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que um quarto, e o seu está cheio, porque você me impediria de completar a minha medida?
Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso.
Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de conserta-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que elas querem.
Agradecida a vocês por me escutarem, e agora a velha Sojourner não tem mais nada a dizer."
Se hoje já sabemos o peso do silenciamento a que mulheres pretas são submetidas, como deve ter sido para Truth se posicionar com tanta força contra o machismo ainda no século XIX? Este discurso coloca a dimensão das especificidades das mulheres negras na luta contra as opressões. Se para as mulheres brancas a luta é contra o machismo, para as mulheres pretas lutamos ainda para sermos consideradas mulheres. Lutamos para que as opressões não apaguem nossa condição como mulher. Por isso, precisamos reverenciar a coragem de Truth. Uma mulher como ela faz com que a gente tenha em quem nos inspirar.
Disponível em: http://acentraldasdivas.blogspot.com.br/…/e-eu-nao-sou-uma-…. Acesso em 10.01.2018

Patricia Silva

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